composição | arar o solo com derivas e mistérios
PT
Como elementos preambulares, recorro a quatro folhas brancas quadradas, separadas por uma pequena margem, onde repousam objetos e materiais encontrados em caminhadas por ruas e praias, bem como em visitas a casas e fábricas abandonadas. Ao longo do processo, os materiais que foram, digamos, marcando presença, destacam-se por sua característica fragmentada, como, por exemplo, materiais arenosos.
Inicialmente, o que me interessou foi recolher essas materialidades associadas a uma ideia de natureza — extraídas e colocadas em contextos de construção, como uma casa, por exemplo, que se desmoronou, deixando esses elementos deslocados do seu ponto de origem, negligenciados e desprovidos de funcionalidade. No estúdio, esses materiais, através de uma dinâmica de afeto, são cuidadosamente tratados, alojados e reparados como elementos fulcrais, resgatando-lhes e atribuindo-lhes novas potencialidades, significações e virtualidades.
A edificação que se ergue sobre e entre as folhas emerge de maneira semelhante e em continuidade com criações anteriores, originando-se de práticas experimentais e intuitivas, sendo processual na sua construção e reflexão, com um caráter performativo e resultando em um dispositivo expositivo.
ENG
As preliminary elements, I employ four white square sheets, separated by a small margin, on which rest objects and materials found during walks through streets and beaches, as well as visits to abandoned houses and factories. Throughout the process, the materials that have, so to speak, been making their presence felt, stand out for their fragmented nature, such as, for example, sandy materials.
Initially, what intrigued me was to collect these materialities associated with a concept of nature — extracted and placed in construction contexts, such as a house, for instance, that has collapsed, leaving these elements displaced from their original point of origin, neglected, and devoid of functionality. In the studio, these materials, through a dynamic of affection, are carefully treated, housed, and repaired as fundamental elements, reclaiming and attributing to them new potentialities, significations, and virtualities.
The structure that rises upon and between the sheets emerges in a manner similar to and in continuity with previous creations, originating from experimental and intuitive practices, being processual in its construction and reflection, with a performative character and resulting in an expository device.
Ideia e performance: Flávio Rodrigues
Documentação de imagem fotográfica: Bruno Baptista, Fernando Silva, Susana Neves e Flávio Rodrigues
Documentação de imagem videográfica: Gustavo Santos
Texto reflexivo (2021-2024): Né Barros
Reflexão em língua gestual/ vídeo performance: Nelson Rodrigues
Intervenção textual/poética: Telma João Santos
Consultoria artística: Eneide Lombe Tavares, Cristina Miguel e Tiago Pinto
Co-produção em residência artística: Teatro de Ferro (Porto, Serviço de Emergência, 2024), PAR-Performance art Rome (Rome), O Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo), DevirCapa (Faro), Arte Total (Braga) e CRL - Central Eléctrica (Porto);
Co-produção: Balleteatro (em parceria com o Jardim Botânico do Porto) e FIDANC / CDCE
Apoio à criação: República Portuguesa / Cultura, Direção-Geral das Artes
Processo #1
Teatro de Ferro, Serviço de Emergência - 6 a 11 de Maio de 2024 - Porto
Nota, por Flávio Rodrigues
PT
Para este primeiro momento de residência de criação e pesquisa no Teatro de Ferro, comecei por criar as 4 folhas quadradas. O papel foi fornecido pela companhia, e a tinta branca foi encontrada numa antiga fábrica de gesso, agora desativada. O encontro entre estes dois materiais gerou o material base de onde se vai alimentar a performance. São folhas enrugadas, texturadas e que libertam um pó na sua movimentação. Também nesta residência, realizei algumas caminhadas locais e encontrei alguns objetos que serviram como ponto de partida para composições aleatórias e intuitivas que pousam sobre o papel.
ENG
For this first stage of the creation and research residency at Teatro de Ferro, I began by creating four square sheets. The paper was provided by the Teatro de Ferro company, and the white paint was sourced from an old, now deactivated plaster factory. The combination of these two materials formed the foundational base from which the performance will evolve. These sheets are wrinkled and textured, releasing a fine powder when moved. During this residency, I also took some local walks and discovered objects that became the starting points for spontaneous and intuitive compositions placed on the paper.
Processo #2
Arte Total, OpenCall - 25 a 31 de Maio de 2024 - Braga
Nota, por Flávio Rodrigues
PT
Para este segundo momento de residência artística, em uma das salas da Arte Total (Braga), concentrei-me na criação de uma coleção de 16 desenhos, desenvolvidos como parte da pesquisa para a performance "Composição | Arar o Solo com Derivas e Mistérios".
A residência foi marcada por uma prática diária de caminhadas, principalmente matinais. Durante essas caminhadas, recolhi pequenos objetos como vidros, pedaços de cerâmica quebrados e madeiras soltas. Esses objetos, projetados ou propostos para integrar a performance, foram, por ora, utilizados como base para os desenhos. Colocava o objeto sobre a folha em branco e, ao arrastá-lo, fazia o decalque com caneta de tinta da china. O desenho resultante é uma espécie de rastro que se multiplica em um processo contínuo. Esse gesto de arrasto, certamente, será transportado como um dos gestos fulcrais na performance.
Os desenhos resultantes ficaram expostos na mesma sala da residência, dispostos no chão, referenciando o lugar onde os objetos foram encontrados.
ENG
For this second phase of the artistic residency, in one of the rooms at Arte Total (Braga), I focused on creating a collection of 16 drawings, developed as part of the research for the performance "Composição | Arar o Solo com Derivas e Mistérios." The residency was characterized by a daily routine of morning walks, during which I collected small objects such as glass fragments, broken ceramics, and loose wood. These objects, intended or proposed as elements of the performance, were initially used as the basis for the drawings. I placed each object on a blank sheet of paper and, by dragging it, traced its outline with black ink. The resulting drawings are a series of traces that multiply in a continuous process. This dragging gesture will undoubtedly become one of the key elements in the performance.
The completed drawings were displayed in the same residency space, arranged on the floor, referencing the locations where the objects were found.
Processo #3
DevirCapa - 15 a 21 de Julho de 2024 - Faro
Nota, por Flávio Rodrigues
PT
Neste terceiro momento de residência, no Devir Capa em Faro, após uma breve pausa, retomei às quatro folhas brancas quadradas como base para projeções, suporte e repouso dos objetos. As caminhadas matinais tornaram-se uma prática regular, percorrendo praias, casas abandonadas e fábricas desativadas. Comecei a recolher areias (algo que já havia iniciado em Vila Nova de Gaia), pois esse material despertou o meu interesse. As areias, antes levadas das praias para a construção de casas, estavam agora dispersas em fábricas ou edifícios abandonados, sem a sua função original. Recolhi essas areias e armazenei-as em garrafas que também encontrei durante as caminhadas.
Durante esta terceira fase, concentrei-me especialmente na interação das areias com as folhas. Os desenhos projetados começaram a assumir, ao longo dos dias, formas que evocavam a Land Art. Gestos como o "arrastar," desenvolvidos na residência anterior, foram novamente aplicados.
ENG
In this third phase of the residency at Devir Capa in Faro, after a brief pause, I returned to the four white square sheets as a base for projections, support, and resting places for objects. Morning walks became a regular practice, leading me to explore beaches, abandoned houses, and deactivated factories. I began collecting sand (something I had already started in Vila Nova de Gaia) because this material captured my interest. The sand, originally taken from the beaches for construction, was now scattered in factories or abandoned buildings, no longer serving its original purpose. I collected this sand and stored it in bottles that I also found during these walks. During this third phase, I focused particularly on the interaction between the sand and the sheets. Over time, the projected drawings began to take on forms reminiscent of Land Art. Gestures such as "dragging," developed in the previous residency, were applied once again.
Processo #4
Marcenaria (Arcozelo) - Agosto de 2024 - Vila Nova de Gaia
Nota, por Flávio Rodrigues
PT
Neste quarto momento de residência de pesquisa e criação, na marcenaria e carpintaria do meu pai, concentrei-me em materiais que, de certo modo, estão sem utilidade ou são considerados desperdício. Foquei-me especialmente no pó ou serrim, o resíduo gerado pelo lixamento ou alisamento da madeira durante a fabricação de móveis. Este pó, semelhante à areia, tem uma característica fragmentada e multiplicada, e projeto a possibilidade de poder ser utilizado para criar desenhos ao ser registrado como matéria sobre uma superfície plana. Além dos pós recolhidos, também foram coletadas madeiras e registos fotográficos dos veios desta mesma matéria, que servirão de inspiração e base para futuras experimentações.
ENG
In this fourth phase of research and creation residency, in my father's woodworking and carpentry shop, I focused on materials that are, in a sense, of little use or considered waste. I concentrated especially on sawdust, the residue produced from sanding or smoothing wood during furniture manufacturing. This sawdust, similar to sand, has fragmented and multiplied characteristics, and can be used to create drawings by registering it as material on a flat surface. In addition to the collected dust, I also gathered some wood pieces and photographic records of the grain of this material, which will serve as inspiration and basis for future experimentation.
Processo #5
Central Eléctrica - 10 a 16 de Setembro de 2024 - Porto
Nota, por Flávio Rodrigues
PT
Focado nas partículas — areias, vidros despedaçados e pó de madeira —, dediquei-me nos últimos dias à separação e catalogação dos materiais, organizando-os de forma a criar uma composição expositiva, marcada pela seleção, harmonização e estruturação. Posteriormente, esses materiais serviram como base para dar continuidade à pesquisa sobre o gesto do desenho em quatro folhas brancas. Entre traços guiados pela intuição e a tentativa de evocar um estado ritualístico, busquei criar um rio simbólico que percorresse e conectasse as quatro folhas, unindo-as em uma narrativa não linear.
ENG
Focused on particles — sand, shattered glass, and wood dust — I have devoted the past few days to the separation and cataloging of these materials, arranging them to create an exhibition-like composition characterized by selection, harmony, and structure. Subsequently, these materials served as a foundation to further explore the act of drawing on four white sheets of paper. Guided by intuition and an effort to evoke a ritualistic state, I sought to create a symbolic river that traverses and connects the four sheets, uniting them into a non-linear narrative.
Processo #6
1ª apresentação pública
21 de Setembro na Biblioteca Municipal de Évora, inserido no FIDANC (um programa de CDCE) - Évora
Processo #7
14 a 17 de Novembro - acolhido por PAR-Performance Art Rome (com curadoria de Daniela Beltrani) - Roma
Processo #8
30 de Novembro - Galeria da Biodiversidade (Jardim Botânico do Porto) - (com curadoria de Balleteatro)
Fotografias de Pedro Figueiredo + Texto de Né Barros
PT
A nova vida dos objetos
Todos os nossos gestos chegam a algum lado, todas as nossas ações têm consequências. Os caminhos que traçamos definem trajetórias por vezes imprevisíveis quando pensados a priori. Mas há também o lugar do desconhecido em tudo o que fazemos. A arte repousa por aqui. A peça performática Composição I Arar o Solo com Derivas e Mistérios, reconstrói-nos um pedaço de uma história nómada feita com recolha de restos. Aquilo que resta do abandono, da interrupção, da degradação. Aquilo que resta do resistir ao tempo e à erosão que ele transporta. Flávio Rodrigues caminha e colhe aquilo com que se cruza e com o que resta daqueles lugares do abandono e do desgaste. O chão que é pisado torna-se, portanto, caminho fértil para que novas vidas aconteçam. O objeto encontrado levanta a suspeita de uma nova vida que se avizinha. O coreógrafo Alwin Nikolais distinguia muito bem motion de emotion, dizia que a dança era motion, não deveria partir daquilo a que se pode chamar emotion. Dizia isto porque, simplesmente, é a própria motion que levaria à emotion. Um determinado fazer levará a uma determinada emoção. Assim, talvez não nos percamos ou afundemos na densidade da emoção e nos desbloqueemos a partir da ação. Também a caminhada e o olhar que atingimos por esses caminhos, são incertos e enigmáticos porque não têm um propósito ou uma finalidade. Caminhamos sem partir de nada em concreto, são pura ação. Composição I Arar o Solo com Derivas e Mistérios, é um momento de suspensão onde os objetos pela mão do Flávio Rodrigues, vão ganhar uma nova vida. A composição irá encarregar-se de lhes dar um novo contexto, de lhes reciclar a memória que lhes resta. A composição age como uma arqueologia duplamente ficcional e histórica. Há um retorno ao lugar e há um retorno ao vazio de sentido. Mas há sobretudo um cuidar de objetos encontrados, largados na destruição do tempo. Há um gesto de afeto eterno. Há um novo castelo que Flávio Rodrigues nos oferece ao nosso olhar. Né Barros
ENG
The new life of objects
All our gestures get somewhere, all our actions have consequences. The paths we trace define trajectories that are sometimes unpredictable when thought of a priori. But, there is also the place of the unknown in everything we do. Art rests here. The performance piece Composition I Plowing the Soil with Drifts and Mysteries, reconstructs for us a piece of a nomadic history made by collecting remains. What remains of abandonment, interruption, degradation. What remains of resisting time and the erosion it carries. Flávio Rodrigues walks and collects what he comes across and what remains of those places of abandonment and wear and tear. The ground that is walked on therefore becomes a fertile path for new lives to occur. The object found raises suspicions of a new life to come. Choreographer Alwin Nikolais distinguished motion from emotion very well, he said that dance was motion, it should not start from what can be called emotion. He said that because, simply, it is the motion itself that would lead to the emotion. A certain doing will lead to a certain emotion. So maybe we don't get lost or sink into the density of emotion and unlock ourselves through action. Also, the walk and the look we achieve along these paths are uncertain and enigmatic because they have no purpose. We walk without starting from anything specific, the walk is pure action. Composition I Plowing the Soil with Drifts and Mysteries, is a moment of suspension where objects by the hand of Flávio Rodrigues will gain a new life. The composition will be responsible for giving them a new context, for recycling the memory they have left. The composition acts as an archeology that is doubly fictional and historical. There is a return to place and there is a return to the void of meaning. But above all there is a care for found objects, left in the destruction of time. There is a gesture of eternal affection. There is a new castle that Flávio Rodrigues offers us to look at. Né Barros
Processo #9
2 a 7 de Dezembro - Galeria Appleton (Lisboa) - (um programa em parceria com O Espaço do Tempo)
Fotografias de Vera Appleton